O PRECONCEITO EXISTE?

Cotas para quê?

Com essa pergunta retórica os repórteres Leandro Loyola, Nelito Fernandes, Margarida Telles e Francine
Lima começam a matéria da época de 6 de abril de 2009, com o seguinte veredicto para a questão: "Reservar
vagas para negros e índios ou estudantes pobres nas universidades públicas não resolve uma injustiça histórica
– e cria ainda mais problemas". Como parece, com essa constatação, os repórteres que atuaram nessa matéria
devem ser especialistas em História, movimentos negros, injustiças sociais e soluções para problemas que
abundam nossa sociedade.
No entanto, vale lembrar aos repórteres, que as matérias sobre fome, pobreza e busca de soluções reais para
essas situações não são muito constantes na mídia, são situações escondidas ou trazidas de forma mais amena
possível para que a opinião pública não se manifeste. É interessante manter sempre em voga os desmandos
políticos e da justiça, pois assim as injustiças sociais serão menores com o tempo tendo a sociedade como
protagonista de mudanças nesse sentido. Nessa reportagem fica claro o viés ideológico e o caminho que a
reportagem busca delinear como pensamento para a sociedade, nem mesmo se deram ao luxo de buscar
enriquecer o debate com opiniões contra e a favor na mesma altura e no mesmo número.
Vamos começar pela declaração de um aluno, se dizendo injustiçado pelo sistema de cotas, "Lugão", coloca
sua visão sobre a injustiça das cotas nos seguintes termos: "O sistema de cotas raciais é injusto. A cor da pele
não quer dizer nada". Com essa citação a reportagem segue colocando a posição da revista e do editorial,
claramente ideológico, traçando uma das mais sensacionalistas matérias com o intuito de tratar de igualdade
social. Podemos então trazer aqui, para informação dos leitores e repórteres, que realmente não deveria ser a
cor da pele ou a raça, motivo de exclusão ou segregação, mas é importante baseado nessa colocação do
entrevistado, levantar dados concretos de institutos sérios (IBOPE e Ethos), sobre a questão de privilégios ou
não privilégios pela cor da pele ou raça, podemos começar por uma pesquisa divulgada em 2007: somente
3,5% dos cargos de chefia em grandes empresas são ocupados por negros, estamos falando de uma situação
que podemos verificar no cotidiano, comparando em termos de igualdade, para não sermos levianos, a
população que se assume negra ou parda no Brasil, nesse mesmo ano é de 49,5 %, ou seja, de que injustiças
estão falando?
Projetando um olhar mais profundo, colocando essa mesma pesquisa como base, indo para o lado gênero, fica
mais claro que a justiça social não existe, pois menos de 0,5% dos cargos executivos são ocupados por negras,
e nesse quesito é bom consultar realmente os especialistas, pois os mesmo dizem que esse resultado pobre em
relação à participação do negro no mercado de trabalho e galgando cargos na escala social dá-se pelo fato de
não terem acesso à educação ou têm acesso à educação deficiente do Estado. A reportagem do jornal Folha de
São Paulo, de 11/05/2008, traz uma matéria sobre o assunto, com esclarecimentos de especialistas, segundo o
jornal, sobre os dados.
O preconceito que tanto é alardeado pela mídia como não existente, também segundo especialistas, é outro
fator que impede a evolução profissional do negro e da negra, pois sempre existiu, mesmo de forma velada,
em todos os momentos da vida do país. Colocando isso de forma compreensível às pessoas que adoram
números e não buscam na realidade ao seu redor claras manifestações e situações de racismo, Lilia Schwarcz,
professora da USP, em uma pesquisa realizada pela própria universidade, também trazida às claras pela Folha,
diz que 97 % dos entrevistados se dizem não racistas ou que não têm preconceito racial, mas 98% dessas
pessoas consultadas conhecem pessoas preconceituosas ou racistas. A discrepância em relação às informações
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da matéria e dados que podem ser comprovados ou vistos em termos reais, lançando-se um olhar mais crítico,
são enormes. Enquanto repórteres em nome do preconceito institucionalizado de forma velada, levam à
sociedade uma questão de grande profundidade, com suas observações preconceituosas, não dando abertura
para o debate, existem muitas pesquisas sérias, dados de institutos e movimentos sociais que têm informações
mais concretas disponibilizando- as para a sociedade. Como a pesquisadora observou, somos ilhas de racismo,
somente a hipocrisia não permite ver isso.
Enquanto existem movimentos organizados, que em alguns momentos são colocados como grupos que estão
somente em busca de vantagens na reportagem da revista, contradizendo algumas posições da própria
publicação que prega, quando lhe convêm, a organização da sociedade, a matéria busca em um geógrafo uma
opinião, claramente conservadora e usada para apoiar a visão tendenciosa imposta na reportagem, que diz que
o projeto criará o racismo instituído em lei "A criação de cotas raciais não vai gerar problema na universidade,
mas para o país", esse mesmo tipo de opinião tem como corista o senador Demóstenes Torres, que de forma
irresponsável, coloca sua opinião, claramente estruturada para defender "os direitos da elite", usando de um
chavão conhecido, para ficar mais claro, como se o responsável pela sua situação atual fosse realmente o
negro.
Com um discurso totalmente baseado em Gilberto Freyre e a causa da elite defendida por ele em suas teses,
principalmente em seu livro Casa grande e Senzala, os defensores da manutenção desse tipo de situação não
se dão ao luxo de olhar para a realidade, para os guetos, favelas e ruas. Em seus escritórios e salas de aula, sob
a proteção de teses ideologicamente centradas, postulam aos quatro ventos suas teorias de democracia racial,
tentando manter nos lugares mais ermos e afastados a população pobre, predominantemente negra. Os arautos
dessa anomalia, o racismo, se travestem de bons moços, usam de uma linguagem articulada para convencer os
negros e negras de que todos têm as mesmas chances de ascender. Esquecem de dizer que a quantidade de
negros e negras que sobem na escala social são os denominados negros de almas brancas, que tiveram seus
lugares reservados à sombra dos senhores na época da escravidão por serem os que aceitavam todos os
desmandos da patronagem inclusive tornando-se delatores e capitães do mato. Depois da abolição, essa farsa
contada para elevar o moral da família real, colocando nas mãos de uma mocinha branca a questão da
escravatura, a intenção mais constante em termos de formação da população do Brasil era de como branqueála
e com isso transformar o país em uma máquina de desenvolvimento.
Independente de época, sempre foi deixado ao negro, até o momento, um legado bastante incômodo, como as
favelas, a fome e o descaso dos que se acham superiores na escala evolutiva. Há que se lembrar que nos idos
do século XIX, um médico chamado Cesare Lombroso instituiu uma pseudociência chamada sociologia
criminal, baseada em outro mico, a frenologia, onde ele julgava ter o poder de prever, com base em um
sistema de estudo da caixa craniana e da fisionomia, que determinado individuo cometeria crimes ou se
tornaria um criminoso. Vale lembrar também que o médico brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, seguidor
dessa aberração, apesar de sua grande colaboração, segundo informações da época, à criminologia, também
trouxe em seus ensaios, livros e pesquisas o peso do preconceito, com base em suas teses os negros são
culpados pela degeneração da raça e pela falta de desenvolvimento do país, que os negros e mestiços eram a
causa principal da inferioridade da nação, incluindo em seu discurso preconceituoso uma idéia de que o negro
tomou emprestado dos seres superiores, arianos, inclusive os sentimentos, a piedade e dotes morais e éticos
que os negros, segundo Nina Rodrigues em sua visão arrogante, não poderiam ter.
Talvez sejam necessárias algumas outras considerações em torno de escolas antropológicas, pois existem
ainda pessoas que se baseiam no livro de Freyre para compor seus textos, colocando a escravidão como
simples fato, não levando em conta as vidas humanas, negras, perdidas seja por castigos, seja pela violência
deliberada da clausura na viagem por mar. A mulher negra, até hoje maltratada e submetida a humilhações foi
mostrada nas obras desse autor como se fosse uma simples serviçal sexual e como se ela estivesse de acordo
com isso, como se a negra escrava tivesse a oportunidade de escolher formar uma raça nova, os mestiços.
Evita-se assim o olhar crítico relacionado à violência sexual a qual eram sujeitas.
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Outra fala interessante da reportagem, de uma obviedade alarmante, é a constatação do repórter que "negros
costumam ser vítimas de discriminação, de preconceito velado, tem menos acesso a universidades e ao
mercado de trabalho. São distorções graves que merecem atenção". Mas ele arremata com sua visão de tom
conservador, "mas a implantação de cotas é uma intervenção desajeitada num assunto delicado". Como se não
fosse delicado o negro ser menos de 15% dos alunos em faculdades e universidades, como se as universidades
públicas fossem freqüentadas, em sua maioria, por pessoas sem condições de pagar uma universidade ou
faculdade particular. Talvez os repórteres devessem recorrer às pesquisas que demonstrem essa situação
delicada do negro nas faculdades e universidades.
A mídia tem feito sua lição quando a questão é indignar-se com a possibilidade da elite perder ou ceder alguns
privilégios, como a incursão nas universidades públicas, onde só entra quem tem formação de ótimo nível,
impossibilitando assim grande parte de alunos vindo de escolas do Estado de alcançarem boas notas, pois o
negro pobre começa a trabalhar muito cedo, ganhando pouco mais da metade do salário de um empregado
branco e tem situações que ganha muito menos, muitas vezes não tem condições de aprendizado pelas
condições de moradia e alimentação, distância do local de estudo, etc. ao passo que os não negros têm sua
educação em escolas privadas, onde se exige mais dos professores, mas também se paga melhor por isso. Só
foi mexer em algo que era um privilégio para a classe média e alguns da classe mais alta, que as cotas viraram
algo terrível. Para não deixar de fora os números, tão alardeados para apoiar teses sem sentido buscando a
segregação, tem números de 2007, pelo IBGE, citando que 13,4 por cento dos estudantes universitários
brancos saem com diploma dos 18 aos 25 anos de uma universidade ou faculdade, a porcentagem de negros
nessa situação é de 4%, segundo a "Síntese dos Indicadores Sociais 2007", a taxa de freqüência para
estudantes brancos em um curso universitário, na mesma faixa etária, é de 19,4% , os negros têm 6,8%. Em
2007, dos aproximadamente 14 milhões de analfabetos do país, 9 milhões se encaixam no conceito negro ou
pardo.
As conseqüências dessas desigualdades é que os negros têm 50% do rendimento dos brancos, ou seja, não é
questão de um ser mais inteligente que o outro, nessa situação todos seriam iguais, se o ambiente escolar, a
formação dos professores e os incentivos fossem iguais, o rendimento dos negros e brancos seria o mesmo.
Então, essa discussão não trata de inteligência, mas de oportunidades que são negadas a um grupo desde sua
vinda forçada para essas terras.
É bonito ouvir que somos um país de mestiços, quando é conveniente salientar tal situação, mas quando se
sente na pele a discriminação desde a infância e juventude, continuando até a velhice, não é uma colocação
válida. A retirada de direitos tem sido uma constante nessa fase da pseudodemocracia que vivemos. Os
direitos conquistados com luta dos movimentos negros e de pobres, como o MST, têm sofrido ataques
grotescos que tem seus executores no judiciário, como o presidente do STF, Gilmar Mendes, em sua
arrogância peculiar e falta de bom senso, tenta levar a opinião pública a uma segregação racial e social,
protegendo sempre quem tem como pagar e bancar as regalias que são correntes nesse poder.
Em outro ponto da matéria os repórteres dizem "o Brasil nunca teve leis segregacionistas" , como se fosse
necessário ter um grupo como a ku klux kan no país para que o racismo fosse reconhecido. Para endossar essa
besteira, colocam um sociólogo, que questiona se quem tem que pagar pelos estragos da escravidão é o
italiano, prossegue, "tem que melhorar a escola pública e não criar cota para quem não conseguiu aprender", o
que leva a crer que existe uma mentalidade tão apequenada no meio acadêmico e intelectual brasileiro que
uma distorção de tal magnitude não deveria sair da boca de alguém que se diz estudioso.
Lógico que devemos lutar por uma escola pública de qualidade, mas quem deve oferecer essa estrutura é o
Estado, mas um mínimo de inteligência se faz necessário para pensar que, enquanto o Estado deixa de cumprir
com seus deveres quem paga sempre pelo descaso é o menos provido de condições financeiras, a maioria
negra. Então para esse sociólogo, Simon Schwartzman, toda essa geração de negros na faixa dos 18 ao 35
anos devem ser relegados ao passado e vamos cobrar desse governo incapaz um passe de mágica para fazer as
escolas públicas se tornarem modelos, relegando os adultos de agora à favelas e condições subumanas que já
são conhecidas.
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Para corroborar esse traço de convicção da matéria, salientam que em Ruanda os belgas privilegiaram os tutsis
em detrimento dos hutus, aí fica claro a ignorância e a tentativa de manipular a opinião, pois nada tem a ver
uma situação com a outra, lá existe uma guerra civil instaurada, culturalmente as diferenças são grandes para
eles e a intolerância é a arma preferida daquele povo. No nosso caso não, a equiparação é necessária, mesmo
porque as universidades públicas são tomadas por pessoas de classe média e alta, tomando o lugar de pessoas
que não tem como pagar uma instituição privada. A questão das cotas sociais foi estabelecida quando o
Estado construiu as universidades públicas, pois elas deveriam contemplar quem não tem condições de arcar
com os custos privados da educação, mas o que ocorre é exatamente o contrário.
Com outro argumento falacioso, os autores da reportagem tentam desqualificar o debate em torno das cotas
levando para o seguinte caminho: "a reivindicação das cotas não é feita por multidões injustiçadas, mas por
grupos organizados" . Após ajudarem a matar a vontade popular, com manipulação, defesa dos mais ricos,
divulgação da ideologia dominante, a mídia agora quer que a população saia às ruas para reivindicar suas
necessidades, como se existisse na mídia uma abertura para divulgar os clamores da sociedade, sobretudo dos
que se encaixam nas camadas inferiores.
Entrevistaram pessoas que em nenhum momento são a voz dos movimentos negros, infelizmente alguns
negros, cooptados ideologicamente pela tentativa de subjugar a capacidade de pensar da maioria, tornando as
idéias de quem defende a segregação nos moldes de hoje, presentes em todos os veículos de comunicação.
São esses negros de alma branca os que têm algum espaço dentro da elite. Os meios de comunicação hoje são
a opinião pública, se sentem donos da capacidade de pensar da sociedade, indo na contramão do que deveria
ser na realidade. Defendem somente seus interesses e vontades, colocando para a sociedade o que mais
convêm a seus planos nefastos.
Na entrevista citam um advogado negro, Militão, que em artigo na revista Caros Amigos compara as cotas à
alforria, que, segundo ele, privilegiaram a alguns e excluíram muitos. Com esse pensamento bizarro, como
pode falar pelos movimentos negros? A colaboração do consultor da Unesco vai por um caminho mais real,
claro e objetivo "o resultado é que, embora 85% dos estudantes de ensino médio estejam em escolas públicas,
na hora de entrar para a universidade pública a proporção se inverte. Em 2006 só 24,7% dos calouros na
Universidade de São Paulo eram oriundos de colégios públicos". Em contrapartida, colocam uma
representante da mais alta sociedade, com sua idéia equivocada de meritocracia e de sociedade, a diretora
executiva da fundação Lemann, dizendo "a cota é boa para representar a diversidade da sociedade brasileira,
mas tem que ser para os melhores" só resta torcer para que não seja essa fundação a escolher critérios de
melhores e piores. Pois alguém que saca uma pérola do tipo "não é verdade que os negros não estão entrando
nas universidades, se existe uma discriminação ela é social, não racial. Ninguém tem preconceito contra o
Pelé ou qualquer negro da elite".
O que não foi dito a essa senhora é que, igual ao inicio do século passado, após a abolição, os negros aceitos
eram os negros de alma branca, como o Pelé e os negros de elite aos quais ela se refere. Isso denota a total
incapacidade dos que se mostram defensores desse lado da questão das cotas. Os argumentos mais usados são
mesquinhos, como esse no fim da reportagem "mas há um grande risco de a adoção das cotas trazer uma
doença capaz de rachar a sociedade brasileira, o racismo explicito em lei". Com essa visão futurista, previsão
ou premonição, os repórteres realmente mostram a que vieram, defendem uma bandeira de quem não quer
mudar nada. Essa visão rasa e conservadora que é corrente na mídia moderna brasileira, como o era no inicio
do século passado. Ou será que essa mensagem tem no seu bojo uma ameaça e um chamado à sociedade para
reagirem contra os "privilégios dos negros que buscam a porta de saída da senzala?".
Então resta, para a glória e prazer dessa, como diria Lembo, elite branca, para os negros o retorno às senzalas
e troncos, ironicamente falando, se deixando subjugar para o deleite dos representantes dessa parte da
sociedade que não quer igualdade, pois é bonito quando estão somente nas palavras e falácias de políticos sem
vergonha. Resumindo, como o Estado tem atuado com a questão da segregação nos últimos tempos, tirando os
pobres e negros do centro da cidade e colocando os à margem da sociedade e da cidade, os negros são
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empurrados para periferias onde as condições mínimas não são supridas, sendo assim, cabe uma colocação
usada por pessoas conscientes dos movimentos negros "ontem senzala, hoje favela".
*Lenilson B. Azevedo.